quarta-feira, 29 de julho de 2009

Filhos de Deus





Hoje encontrei deus
E ele disse-me que era um filho dele,
Encontrei-o à saída
Da casa da mãe,
E ele repetiu,
Sou teu pai.
Já puxando as palavras,
Tortas disse-lhe que não:
Porque eu sou o homem,
Sou aquele homem por quem vocês passam
Todos, todos os dias.
Sou o jornaleiro
Que não lê as notícias que vocês compram.
Não distingo um ministro de um presidente,
Só como carne vermelha,
E putas baratas.
Não gosto de música,
Abomino os vossos livros,
Os vossos Saramagos
E Dostoievskys.
Voto no político mais fotogénico
E ainda penso que o cu não tem sexo.
Penso isso em silêncio,
Como todos vocês.
Faço a barba todos os dias
Elas queixam-se que pica,
Que lhes pica a rata.
E no final do dia
Deito-me e não rezo.
Custa mais, não custa?
O lubrificante do sono
Acaba por ser a certeza de que amanhã:
Vou vender as vossas notícias,
Não criticarei nenhum político,
Não lerei um único livro
Engordarei com vaca e batatas fritas,
Não encontrarei o amor de que tanto falam.
Nem o quero encontrar.
Vou acordar,
Fazer a barba
E à noite nem rezo.
Mas eu é que sou filho de deus.

E os outros?
E vocês?

Ele desliga a luz e fala
"Os outros são filhos da puta,
por fazerem tudo o que tu não fazes,
E à Noite:
Ainda rezam."





Por Alfredo Mau

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Bairro do Amor


No bairro do amor a vida e um carrossel
onde há sempre lugar para mais alguém
o bairro do amor foi feito a lápis de cor
pra gente que sofreu por não ter ninguém

No bairro do amor o tempo morre devagar
num cachimbo a rodar de mão em mão
no bairro do amor há quem pergunte a sorrir
será que ainda ca estamos no fim do Verão

Eh pá, deixa-me abrir contigo
desabafar contigo
falar-te da minha solidão
Ah, é bom sorrir um pouco
descontrair um pouco
eu sei que tu compreendes bem

No bairro do amor a vida corre sempre igual
de café em café, de bar em bar
no bairro do amor o sol parece maior
e há ondas de ternura em cada olhar

O bairro do amor é uma zona marginal
onde não há hotéis nem hospitais
no bairro do amor cada um tem de tratar
das suas nódoas negras sentimentais

Eh pá, deixa-me abrir contigo
desabafar contigo
falar-te da minha solidão
Ah, é bom sorrir um pouco
descontrair um pouco
eu sei que tu compreendes bem



Jorge Palma

terça-feira, 7 de julho de 2009

No man is normal, perfect — this is true.



No man is normal, perfect — this is true. A normal man were a man incapable of being affected by disease. For every disease (as I think) predisposition is necessary, a predisposition of the organism to disease. The degree of predisposition is the degree of abnormality. Every disease supposes predisposition to it, even as every real thing supposes its own personality, since it is real.

Fernando Pessoa
Não porque os deuses findaram, alva Lídia, choro...
Mas porque nas bocas de hoje os nomes sobrevivem
Mortos apenas, como nomes em pedras sepulcrais.
Por isso, Lídia, lamento
Que Vénus em bocas cristãs seja uma palavra dita,
Que Apolo seja um nome que usam quantos
Sequentes de Cristo — e a crença lúcida
Nos deuses puramente deuses,
Tenha passado e ficado, cinza do que era fogo,
Lama do que era água reflectindo as árvores,
Tronco morto do que dava fruto e florescia.
Mas se choro, não creio
Menos que ainda existo, como existem os deuses


Ricardo Reis
in Odes